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Eu me contradigo? Pois bem, eu me contradigo. Sou vasto, contenho multidões. (W.Whitman)

sábado, 14 de março de 2009

O menino e a mudança

O velho caminhão roncava noite adentro na estrada de terra batida em meio à mata do cerrado. Os olhos bem abertos, as mãos crispadas no painel, sentado no colo da mãe, ele encarava a escuridão numa tentativa vã de definir o chão além dos fachos dos faróis, única referencia no manto negro que cobriu a paisagem.
Quando a mudança partiu da grande casa conjugada à beira da estrada, e onde coabitavam três famílias de operários, foi com grande expectativa que embarcaram no caminhão rumo a uma nova vida.
Era sempre uma mudança radical; a casa nova, os vizinhos novos e estranhos, até que se dessem a conhecer, com seus segredos e histórias sem conta que se ouvia na cozinha durante as visitas de boas vindas.
A nova rua era outra expectativa. Também, não conhecia muitas ruas nem muitos lugares. Apenas vagas lembranças de cidades por onde passaram em outras tantas mudanças, sempre com destino a um acampamento de obras no meio do nada, ou um vilarejo à beira de uma estrada poeirenta que levaria só Deus sabe onde.
No embarque, a mudança de trecos foi arranjada na carroceria, os irmãos mais velhos acomodados em nichos cobertos com a grossa lona de algodão encerado. Tinha sido o escolhido para viajar na boleia com a mãe e o irmão caçula, ainda muito novo para ir em cima junto com os demais.
Foi um acontecimento. O banco alto e acolchoado coberto por uma napa lisa de aspecto novo, mais parecia uma cama de rico, como aquelas de que sempre ouvira falar nos comentários das mulheres que voltavam de um trabalho doméstico na casa de algum “Dr. Engenheiro”, chefe da companhia.
O cheiro de gasolina logo encheu suas narinas. Um cheiro estranho e bom, trazendo alguma revelação inesperada, um segredo desvendado daquelas máquinas que via passar todos os dias pela estrada em frente a sua casa. Imediatamente tomou consciência dos comandos que se mostravam em botões, alavancas, pedais, e o volante, uma roda que o motorista fazia girar e que milagrosamente direcionava o caminhão enorme e pesado na direção desejada. Sem ela tudo iria para o fundo do rio ou para o fundo de uma ribanceira à beira do caminho. Ainda estava presente, a lembrança do primeiro susto, o modo terrível como seu coração disparou quando percebeu que havia uma cerca fechada bem à frente, logo depois de pegarem a estrada.
De início foi uma emoção quando, tudo já pronto, o motorista veio e acionou o motor. Aos primeiros movimentos foi como se o chão desaparecesse sob seus pés. E aquela sensação de flutuar, quase como se voasse. O mundo em movimento à sua volta, coisa inusitada e muito engraçada, as pessoas passando em velocidade e olhando espantadas a mudança que passava. Logo o corpo se adaptou e a viagem seguiu relaxada, alegre e prometendo emoções. E de repente, a cerca estava lá, atravessada na frente do caminho, separando a estrada do morro cheio de pedras e mato que vinha logo após. As mãos avançaram procurando apoio já prevendo o impacto, e num relance lembrou-se dos irmãos no alto da carroceria. Imaginou-os voando por cima da boleia, atirados no mato, ferindo-se nas pedras e o caminhão tombando com toda a mudança de trecos espatifando-se nas rochas. Procurou o rosto da mãe num pedido mudo de socorro e esclarecimento e vendo-o impassível, o olhar fito na estrada, intuiu que o perigo era imaginário. Contudo a cerca se aproximava e a cada instante tentava adivinhar uma porteira, um vão, uma passagem qualquer. Nada. E o morro adiante? Não havia como subir. O motorista com as mãos no volante seguia tranquilo, um sorriso no rosto. Incompreensivelmente ninguém parecia ver a cerca. E chegaram enfim ao final da estrada. Um pouco mais e seria a catástrofe. O fim de todos talvez. E nem perceberam o perigo. Mas num movimento suave e contínuo o homem do caminhão girou a roda grande e fina que segurava e para sua surpresa a estrada não terminava na cerca. Escondida na vegetação alta, por trás de um grupo de árvores retorcidas, uma curva. A estrada seguia em outra direção para seu alívio e sossego.
Daí em diante sua diversão foi esperar por outras cercas, outros morros, algumas ribanceiras que surgissem a qualquer momento no meio da estrada. Nesses momentos seu olhar se concentrava nos movimentos do motorista e já adivinhava o momento exato em que o homem giraria a roda grande e fina que agora sabia chamar-se “volante”, escapando ligeiro do obstáculo.
Bem logo se cansou desse jogo e concentrou-se em outro aspecto da viagem, também muito interessante pelas sensações que produzia.
Notou que sempre que a estrada era reta e se perdia ao longe, o homem do volante pisava em uma pequena tábua à sua frente no fundo da cabine. Assim fazendo o barulho do motor ficava mais forte e coincidência ou não, o caminhão andava mais rápido.
Nessas horas ficava de pé, sentindo a força do vento entrando pela janela e a vertigem da velocidade. Tinha mesmo a impressão de que o mundo fugia do caminhão como as pessoas fugiam de um boi desgarrado.
O dia foi passando sem grandes surpresas ate que o Sol de repente estava no horizonte. Dentro em pouco seria noite. E a noite era escura, muito escura. Ninguém saia de casa depois do anoitecer, pois era impossível ver as coisas e o perigo de cair num buraco era enorme.
Em casa, quando apagavam as lamparinas não se podia ver as próprias mãos, então como andar na escuridão da noite lá fora?
Quando seu pai chegava tarde do trabalho sempre trazia uma lanterna que fazia uma luz muito fraca, mas que mostrava o caminho e onde pisar no escuro.
Sem contar os bichos que caçavam à noite. Os bichos enxergavam no escuro, como sua irmã contou um dia. Isso era uma coisa difícil de entender. Nunca tinha visto um deles, mas ela mostrou uma figura de calendário com alguns animais caçando num lugar muito longe dali. Ainda bem que moravam bem longe, pois seria de se temer sair de casa mesmo durante o dia com alguns daqueles animais rondando por perto. Eram assustadores!
Muito maiores que os gatos que choravam perto de casa, no meio da noite, provocando medo e visões terríveis na imaginação de todos.
Gatos choram como bebês tristes.
Antes pensava que fossem crianças deixadas pelas mães no escuro, como castigo por alguma diabrura descoberta. Seu coração partido de pena saltava no peito quando, do nada, surgia um lamento longo e sofrido perfurando o negrume da noite. Até que um dia, não suportando mais, chamou pela mãe. Ela veio no escuro, acendeu a lamparina de querosene ao lado da cama e contou a história dos gatos. Bichos estranhos os gatos.
Em noites de lua cheia, saíam para brincar e aqueles gemidos terríveis eram de alegria, e porque gostavam de ficar perto uns dos outros. Parece que eles tinham brincadeiras de passar sustos nos menores, no escuro, e esse era o motivo de todo aquele desespero. No fundo eram brincadeiras como as suas, com a diferença que estas eram feitas à luz do dia.
Agora o caminhão roncava noite adentro e não havia meio de enxergar além de poucos metros à frente. O medo maior era que algo surgisse de repente no meio da estrada e o motorista não tivesse tempo de desviar, como aconteceu com a cerca horas antes. Um buraco, um barranco, um animal qualquer, todas essas possibilidades enchiam seu coração de um pavor silencioso.
Cansado de vigiar a estrada, os olhos ardentes do esforço de adivinhar os próximos metros de chão, foi deitando a cabeça no seio da mãe, até que o sono venceu a última resistência. Enfim adormeceu.
Foi o silêncio que o despertou. O caminhão estava parado numa rua iluminada por postes de luz elétrica, que emanavam uma claridade amarelo pálido, e ao longe lembravam estrelas em fila. Nunca tinha presenciado uma noite tão clara.
Desceu na calçada e estacou extasiado na frente da casa, a nova moradia. Uma casa de tijolos, linda, branca, com janelas de vidro e telhado de cerâmica marrom. Havia uma escada lateral, de cimento com vários degraus, e que dava para uma saleta na entrada. Em seguida, uma sala maior e dois quartos.
Meses depois desceria essa escada várias vezes no início da noite para olhar a rua enquanto comia um pastel delicioso feito por sua mãe. Olhar a rua seria o prazer dos prazeres por muito tempo. Gente de todos os tipos, carros de passeio, charretes com dois cavalos, e a luz! Tudo isso era iluminado com aquela luz âmbar que tanto o encantou na noite da chegada.
Naquela noite, quando entraram na casa, foi um acontecimento. O teto era forrado de madeira pintada de marfim, as paredes claras e lisas, sem manchas de mofo ou gordura como se habituara em outras moradias. O chão, de cimento vermelho e liso, brilhava com o reflexo das lâmpadas penduradas no teto.
As lâmpadas! A luz!
Jamais em sua curta existência pensou que poderia haver coisa mais deslumbrante. Nada de lamparinas, nada de tocos de velas, nada de lampião de querosene com seu cheiro enjoativo. Lâmpadas, como seu pai lhe explicou.
Naquela noite, se demorava por longos momentos olhando para cima, enquanto descarregavam a mudança. Entrava em cada cômodo para admirar aquelas obras de arte. Cada uma delas brilhando de forma diferente, com uma cor diferente. Fazendo tudo tão claro em volta, tudo tão bonito, tão radiante. A vida era assim, então? Era tão lindo o acontecimento, tão apaixonante, que naquela noite, ao se deitar, pediu a Deus que a luz nunca mais fosse tirada das suas vidas.