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Eu me contradigo? Pois bem, eu me contradigo. Sou vasto, contenho multidões. (W.Whitman)

sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Puma

Era um lindo dia no inicio da primavera e o degelo fazia a correnteza do rio correr mais forte. Eu estava sentado logo abaixo de uma linda corredeira onde a água saltava entre as pedras em contínuo ronronar de gato que recebe carinho no colo. Deixei a vara de pesca montada com molinete descansando na beirada da margem e fiquei olhando a paisagem em volta. Havia muitas árvores novas no outro lado e onde eu estava era um terreno vazio, ondulado e ainda coberto com um pouco de neve caída durante a noite.
Ouvi um ruído leve de algo se arrastando no chão e quando olhei, vi minha vara caindo no rio sendo arrastada por alguma coisa grande na água. Pensei num peixe enorme, mas quando olhei para o rio, para minha surpresa, um leão descia com a corrente se debatendo e tentando se aproximar da margem. Um leão nadando? Nunca pensei que isso fosse possível. Em minha concepção de felinos, eles têm horror a água. No entanto lá estava um no meio do rio e levando minha vara de pesca novinha. Deveria ter caído na água rio acima, e agora tentava escapar. Sem pensar pulei na água na esperança de alcançá-la mas não consegui. A correnteza me levou rio abaixo, por uns cem metros, até que consegui nadar de volta. Ao mesmo tempo que atingi a margem, vi o leão saindo também, uns cinquenta metros abaixo. Ele ainda arrastava minha vara, puxada pelo anzol que aparentemente havia fisgado seu pelo, ou a própria pele, quando descia rio abaixo.
Não podia desistir agora; era uma vara de fibra, com um molinete caro, e eu a usava pela primeira vez.
O animal já fugia pra longe do rio e eu sem titubear fui atrás. Ele subiu por uma elevação do terreno e desapareceu. Corri ainda mais, num esforço de atleta no sprint final da corrida e atingi o topo da elevação. O terreno terminava numa concavidade de uns quinze metros de diâmetro que formava uma pequena arena. E no centro dessa arena, o leão esperava! Via agora que na verdade era um puma. Ele estava sentado sobre as patas traseiras e me olhava com seus olhos caramelados e fixos. Fiquei paralisado, e só então percebi a burrice que foi segui-lo. Ele se levantou e veio caminhando quase agachado em minha direção, o olhar paralisante que não se desviava, fixo em meu rosto e a cauda baixa, como se fosse uma corda estirada e pronta para impulsiona-lo à frente. De repente saltou. Tive tempo ainda de juntar as mãos com os dedos entrelaçados e os braços formando um V invertido, para proteger o rosto, de forma que quando me alcançou, suas patas atingiram meus ombros e pude agarrar sua mandíbula por baixo da garganta.
Cai de costas com todo seu peso por cima de mim. Era um animal tremendamente forte e pesado.
Ao cair, num instinto de proteção corporal, dobrei a perna e meu pé ficou firmemente apoiado na articulação da sua coxa com o quadril. Já no chão suas fauces escancaradas junto ao meu rosto, pude sentir seu hálito fétido em toda sua crueza e selvageria.
Fiz um esforço sobre humano para jogá-lo de lado com a força do meu pé apoiado e um giro de corpo. Ela tombou de lado mas não foi de grande alivio, pois com a força da inércia, e como se fosse um judoca experiente, jogou-me por cima do seu corpo e por sorte caí sobre as mãos e os joelhos. Já me preparava para levantar quando ouvi seu rugido subsônico, paralisante e terrível. Mal tive tempo de pensar na minha morte iminente.
Acordei me debatendo, ainda com espírito de luta. Estava na minha cama, quentinha e aconchegante. Sem neve, sem frio, sem leões ameaçadores.
Me virei de lado com um suspiro e tentei voltar a dormir.
Mas antes de cair no sono ainda pensei uma coisa engraçada. Alguém já sentiu cheiro no sonho? Não me lembro de alguma vez ter sentido cheiro num sonho. Acho que os sonhos não têm cheiro.
Cai num sono sem sonhos até amanhecer.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A vida em suspenso

Quando pela manhã, abaixoSofia Carvalho2 a cabeça no ato de lavar o rosto, me lembro que ela sempre dizia que não usasse sabonete para não ressecar a pele. Me olho então no espelho e por um instante a lembrança dela me olhando faz o ambiente desaparecer. Quase ouço sua voz me dizendo isso e, com o seu sorriso lindo, brigando comigo. Rimos juntos do meu velho hábito e tento beijá-la com o rosto molhado. Ela foge, rindo entre protestos. A imagem se esvai. Meus olhos vermelhos de insônia não deixam dúvidas. Foi-se .Só resta-me olhar todas as manhãs esse rosto macilento e triste, esses olhos cansados, minha testa enrugada, emoldurada de cabelos cinza, o que aumenta o aspecto triste de ruína no que sobrou depois da queda.
Meus lábios murmuram palavras de escusas que não sei se poderiam um dia ter surtido efeito. Nada é pior que a incerteza e ainda mais a incerteza do que poderia ter sido. Procuro nos meus olhos a razão da culpa que me condenou e me sinto pior por não vê-la tão certa quanto gostaria.
Melhor seria me saber culpado. Ajudaria a suportar o castigo. Saber-se culpado alivia a carga da condenação.
A água fria me trás o dia para suportar e olho com desinteresse pela janela. O sol ainda não despontou e o dia promete ser frio e nublado como num inverno prolongado e sem vida.
Meus dentes, escovados com atenção acentuada, me lembram que um dia pensei em endireitá-los. Preciso fazer isso, sempre penso. Outra instrução dela, claro que sem nenhuma imposição. A toalha me esfregando o rosto me diz que o melhor seria seca-lo sem atrito para não prejudicar a pele.
Caminho pensativo pelo corredor que me leva à cozinha. Vou descalço. Sentindo a frio do piso sob meus pés ainda quentes me lembro com saudade que ela também gostava de andar descalça pela casa. Ainda vejo seus pés, brancos como mármore num movimento de dança sensual.
Um café me estimularia agora. Quem sabe um alento novo, uma energia que me dê a alegria para suportar esse dia que se anuncia sombrio.
Erro a mão no café. Ficou amargo em excesso. Pode ser a minha predisposição para coisas amargas que me fizeram dosar o pó de forma exagerada. Tento um pouco de mel para aliviar o amargor e até que alivia mesmo. Tomo um copo inteiro com deleite e lentamente, sorvendo cada gole escaldante, sentindo o estímulo da cafeína quando entra no meu sangue quase que de imediato.
Me reanimo; olho para fora e vejo que uma chuva fina começa a cair. Que se dane, não vou sair de guarda-chuva. Vou ao quarto e calço uma bota fechada com meias grossas. Detesto ficar com os pés molhados. Visto uma jaqueta impermeável e retorno à cozinha. Outro café, desta vez preguiçosamente, olhando pela janela. Nunca estivemos juntos quando chovia.  Eu, pelo menos, nao me lembro. Talvez por um efeito do sentimento que nos unia, só me lembro dela em dias claros de muito sol. Realmente, a vida, o mundo, as pessoas, tudo era luz, tudo era radiante quando estava junto dela.
Termino o café e deixo a xícara sem lavar em cima da pia, os olhos marejados; são lágrimas insistentes que sempre afloram assim pela manhã.
Alcanço a sala e abro a porta resoluto. Desço num passo firme o único lance de escadas e ganho a rua sob a garoa e o vento.
Preciso sugar um pouco dessa vida que se agita na cidade. Não posso me dar por morto e desistir.
Quando estiver refeito dessa modorra, no final do dia, ligo pra ela, e tento de novo. E assim farei amanhã, e depois, e depois... sei que ainda vou dormir em agonia. Mas tentarei.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O dia seguinte.

Eu tentei aceitar. No princípio até consegui. Seus argumentos eram mais do que lógicos, e analisados friamente, faziam sentido. Analisados friamente, eu quis dizer, porque, por outro lado, o lado mais emotivo, o lado em que as decisões são ditadas pelo coração, seus motivos chegavam a parecer cruéis, insensatos, irracionalmente realistas. Sim, porque a realidade exige uma boa dose de fantasia, ou vivemos uma vida árida, sem jardins, sem pétalas que se abrem, sem a percepção da chuva tamborilando na calçada, sem o sorriso da criança que pela primeira vez consegue se manter de pé.
Mas, fazia-se mister ler seus argumentos pela ótica matemática da estatística. Absoluto non sense aplicado às coisas do coração.
Concordei a contragosto, mas também não havia saída possível. Ela estava saindo. Saindo da minha vida, saindo dos meus sonhos mais acalentados, saindo dos meus planos, saindo, saindo, saindo, ... e eu não suportava a ideia que teria de viver sem seu sorriso a partir dali. Não ouviria mais sua voz todas as manhãs, não teria mais a quem levar uma toalha no banho, não teria mais a quem servir um copo de água na sala, nas tardes quentes de final de verão. Não teria...não teria...tudo isso passava em minha mente num relâmpago enquanto concordava com seus argumentos sórdidos. Muitas vezes a lógica é sórdida, principalmente quando fere sentimentos nobres. Quando não leva em conta as emoções envolvidas.
Ainda pela manha aceitei o fato de ter que me aturar sozinho. Não vivi aquele dia. Usei o tempo me convencendo sempre que seria melhor assim e que poderia encontrar algo de positivo na situação, me iludi todo o dia com a premissa que sendo livre teria mais tempo para fazer o que bem entendesse.
No entanto, chegando em casa no inicio da noite, o silencio caiu sobre o meu rosto como uma onda de choque numa explosão. Um silencio que parecia ter o hálito morno dos ventos do deserto. Sem ter simplesmente o que fazer sentei-me e abri sua ultima correspondência, a mesma em que ela usou dos seus argumentos lógicos e paradoxalmente insensatos. Li como quem lê um anuncio de jornal. De súbito, duas ou três lágrimas saíram apressadas, rolaram-me  pelo rosto, se perderam no  canto dos lábios, e quando senti seu gosto salgado, como salgada era a desilusão, deixei pender o rosto e correr livre o pranto. Livre e silencioso, como seria a vida dali adiante.