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Eu me contradigo? Pois bem, eu me contradigo. Sou vasto, contenho multidões. (W.Whitman)

sábado, 19 de novembro de 2011

      As memórias vinham agora de uma vivência inacreditável, possivelmente em algum tempo paralelo, tal era a incongruência dos fatos.
Estivera um tempo, vivera alguns longos anos ou participara por um período, da vida de uma família estranha. Naquele meio cresceu prisioneiro em seu próprio lar, se pudesse defini-lo como tal. Não interagia com outros meninos da mesma idade, não saía na rua, alem das idas à escola ou ao catecismo. Quase nada sabia do mundo exterior, das malandragens, dos jogos, da malícia que se aprende nas ruas e que, bem ou mal ajuda a formar o carater dos homens. O espaço que lhe era destinado para laser era um quintal cercado de muros, que compartilhava com os irmãos menores. Irmãs também as tinha mas eram seres especiais, sempre ocupadas dentro da casa num grupo coeso de amigas ou clientes da mãe que era costureira, num tagarelar contínuo, entre risos, musica e planos de saídas para os finais de semana. Com exceção de uma delas, que era responsável por toda a lavagem de roupa da casa, os afazeres da cozinha, o banho dos menores e que sofria algumas punições quando atrasava todas essas obrigações.
Pelo critério da casa, os garotos eram pessoas desprezíveis. O único quarto que dividiam era usado como depósito de dejetos da residência, ( sapatos sem uso, roupa suja, livros velhos, utensilhos já imprestáveis que ainda guardavam alguma esperança de conserto), era o quarto da bagunça. Dividiam uma única toalha de banho e a roupa de cama simplesmente não existia. Dormia-se sobre o colchão nu, deformado e manchado pelo uso prolongado. Também não conhecia o uso da escova de dentes. Descobriu isso aos 15 anos quando um colega de escola, no meio de uma discussão qualquer lhe disse na cara que sua boca fedia por ele não escovar os dentes, com a agravante que as moscas voejavam à sua volta atraídas pelo mau cheiro. Ficou paralisado. Nunca tivera uma escova de dentes. Nem tinha noção de que era preciso usa-la diariamente. Haveria mais coisas que não sabia? Coisas que, por lhe faltarem o deixariam mal em relação às pessoas? Suas roupas, como seriam aos olhos dos outros? Seus cabelos seriam ridículos talvez? Talvez por isso aquela colega  de sala, linda, o olhasse com aquele ar de deboche?
Para agravo das suas dúvidas, seu pai chegou um dia e disse que já era hora dele se virar sozinho. Disse que já tinha quase 16 anos e não lhe daria mais sapatos e roupas. Porém, não lhe ensinou a trabalhar. Depois de anos vivendo fechado como um pássaro engaiolado, não saberia, é óbvio, como encontrar um primeiro emprego. Andou com as mesmas roupas, que já eram exíguas, por longo tempo, até vê-las puírem-se e de seus sapatos não restarem praticamente que o couro de cima bem ralado. As solas já não existiam. A planta do pé pisava literalmente o solo. Mas precisava fingir que estava calçado, então andava evitando levantar excessivamente os pés, para que não aparecessem a quem o olhasse de trás.
Viveu assim aquela adolescência ingrata. Foi um rapaz bonito nos verdes anos. Teria amado, teria sido correspondido. 
Um dia, cansado de tudo, uma revolta invadiu sua alma. Percebeu que se não tentasse, jamais sairia dali, da masmorra que era sua vida. Então fugiu da prisão que tinha sido seu único lar.