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Eu me contradigo? Pois bem, eu me contradigo. Sou vasto, contenho multidões. (W.Whitman)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A vida em suspenso

Quando pela manhã, abaixoSofia Carvalho2 a cabeça no ato de lavar o rosto, me lembro que ela sempre dizia que não usasse sabonete para não ressecar a pele. Me olho então no espelho e por um instante a lembrança dela me olhando faz o ambiente desaparecer. Quase ouço sua voz me dizendo isso e, com o seu sorriso lindo, brigando comigo. Rimos juntos do meu velho hábito e tento beijá-la com o rosto molhado. Ela foge, rindo entre protestos. A imagem se esvai. Meus olhos vermelhos de insônia não deixam dúvidas. Foi-se .Só resta-me olhar todas as manhãs esse rosto macilento e triste, esses olhos cansados, minha testa enrugada, emoldurada de cabelos cinza, o que aumenta o aspecto triste de ruína no que sobrou depois da queda.
Meus lábios murmuram palavras de escusas que não sei se poderiam um dia ter surtido efeito. Nada é pior que a incerteza e ainda mais a incerteza do que poderia ter sido. Procuro nos meus olhos a razão da culpa que me condenou e me sinto pior por não vê-la tão certa quanto gostaria.
Melhor seria me saber culpado. Ajudaria a suportar o castigo. Saber-se culpado alivia a carga da condenação.
A água fria me trás o dia para suportar e olho com desinteresse pela janela. O sol ainda não despontou e o dia promete ser frio e nublado como num inverno prolongado e sem vida.
Meus dentes, escovados com atenção acentuada, me lembram que um dia pensei em endireitá-los. Preciso fazer isso, sempre penso. Outra instrução dela, claro que sem nenhuma imposição. A toalha me esfregando o rosto me diz que o melhor seria seca-lo sem atrito para não prejudicar a pele.
Caminho pensativo pelo corredor que me leva à cozinha. Vou descalço. Sentindo a frio do piso sob meus pés ainda quentes me lembro com saudade que ela também gostava de andar descalça pela casa. Ainda vejo seus pés, brancos como mármore num movimento de dança sensual.
Um café me estimularia agora. Quem sabe um alento novo, uma energia que me dê a alegria para suportar esse dia que se anuncia sombrio.
Erro a mão no café. Ficou amargo em excesso. Pode ser a minha predisposição para coisas amargas que me fizeram dosar o pó de forma exagerada. Tento um pouco de mel para aliviar o amargor e até que alivia mesmo. Tomo um copo inteiro com deleite e lentamente, sorvendo cada gole escaldante, sentindo o estímulo da cafeína quando entra no meu sangue quase que de imediato.
Me reanimo; olho para fora e vejo que uma chuva fina começa a cair. Que se dane, não vou sair de guarda-chuva. Vou ao quarto e calço uma bota fechada com meias grossas. Detesto ficar com os pés molhados. Visto uma jaqueta impermeável e retorno à cozinha. Outro café, desta vez preguiçosamente, olhando pela janela. Nunca estivemos juntos quando chovia.  Eu, pelo menos, nao me lembro. Talvez por um efeito do sentimento que nos unia, só me lembro dela em dias claros de muito sol. Realmente, a vida, o mundo, as pessoas, tudo era luz, tudo era radiante quando estava junto dela.
Termino o café e deixo a xícara sem lavar em cima da pia, os olhos marejados; são lágrimas insistentes que sempre afloram assim pela manhã.
Alcanço a sala e abro a porta resoluto. Desço num passo firme o único lance de escadas e ganho a rua sob a garoa e o vento.
Preciso sugar um pouco dessa vida que se agita na cidade. Não posso me dar por morto e desistir.
Quando estiver refeito dessa modorra, no final do dia, ligo pra ela, e tento de novo. E assim farei amanhã, e depois, e depois... sei que ainda vou dormir em agonia. Mas tentarei.

2 comentários:

  1. Flávio,
    vc escreve de forma intensa e ao mesmo tempo tão suave. Lendo, sou capaz de vivenciar cada passo
    seu. Lindo...muito lindo, apesar de belamente
    triste. Mas gosto de melancolia.
    Bjos,
    Cibele

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  2. Chorei ao ler este texto... É lindo, Flávio. E de uma emoção imensa.

    Parabéns.

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É sempre um prazer receber amigos.
Imensamente agradecido por sua visita.
Flavio Dutra.